GEHLAL

Quais são as lições metodológicas que os clássicos têm para nos dizer?

Talita dos Santos Fernandes

Mestranda na UNIFESP

Introdução

O presente texto deu-se a partir das reflexões sobre a metodologia das ciências sociais. Proponho uma reflexão sobre o que podemos aprender com os clássicos a partir das obras de Aristóteles – A Política escrito por volta dos anos 335-323 a.C e de Nicolau Maquiavel – Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio (1513 -1517).

Minha intenção não é fazer uma discussão sobre os conceitos utilizados pelos autores, mas sim, compreender quais foram as questões que os orientaram nas investigações, como fizeram suas pesquisas e o que suas obras contribuem na atualidade, e quais são as aproximações sobre o conceito de política nas obras. A importância desse tema é fundamental em um contexto de intensas críticas à ciência, críticas ao racionalismo científico, em que a ciência é colocada em xeque em movimentos que pregam que precisamos (des)ler os clássicos.

As questões que norteiam esse debate são as contribuições metodológicas nas ciências sociais por se tratar de uma ciência não exata, mas que requer tanto rigor científico quanto às ciências exatas e naturais. Dito isto, busquei compreender a partir da historicidade as análises desses autores. 

Para tanto, é necessário situar o contexto histórico político e cultural em que as obras foram escritas. Aristóteles, foi um dos mais influentes discípulos de Platão, realizou os seus estudos em Atenas, onde pôde observar como funcionava aquela pequena pólis com uma vida política e cultural muito ativa. Nas obras de dramaturgos gregos aparece muito da vida política de Atenas como é representado em algumas peças de teatro como Lisístrata de Aristófanes e as histórias de Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona de Sófocles.

Atenas, é um dos exemplos mais citados quando o assunto é sobre participação política. No entanto, devemos fazer todas as ponderações ao falar sobre esse assunto na atualidade, é dever do cientista político não deslocar o lugar e o tempo em que foi construída a teoria, bem como outras temáticas que aparecem na obra. Estamos traçando alguns dos temas abordados na obra de Aristóteles, mas o objetivo desta reflexão não é discutir esses assuntos de forma aprofundada, é mais para compreender os termos em que foi construído o livro.

Na obra A Política, notamos considerações de como os cidadãos precisam se portar para alcançar a felicidade e a coesão da pólis. Vemos o quanto a noção de família enquanto uma instituição é importante para o desenvolvimento na política. As categorias de cidadãos também definem muito bem os papeis sociais dos escravizados, dos homens e das mulheres, quem deveria participar da vida política e quem não. Feito essa pequena introdução da obra de Aristóteles, partimos para breves considerações sobre Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio – Nicolau Maquiavel.

Quando citamos Nicolau Maquiavel já nos reportamos O Príncipe (1532), obra de fundamental importância e que nos traz muitas lições para compreender a política e como deveria se comportar um Príncipe ou um principado. Em outras leituras, como a de Antonio Gramsci, nos Cuadernos del Cárcere de19191920, o Príncipe é lido como a função que os partidos políticos devem seguir e a reflexão sobre qual é o papel do partido político. Mas, para esse pequeno texto, foi escolhida a obra Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.

Nesta obra, Maquiavel, imbuído pelo Renascimento italiano, em que a Itália fragmentada estava buscando uma unificação cultural e política para um fortalecimento do país contra guerras, uma nova forma de reconhecer e lidar com a política é desenvolvida por Maquiavel. Em contraste com o pensamento político de Aristóteles que via a organização da sociedade como algo natural, legitimado pelos mitos e deuses gregos, Maquiavel inaugura, o pensamento moderno, marcada pela ruptura do teocentrismo e passa a colocar o homem como o centro de tudo. 

Nesse sentido, a política para Maquiavel é vista de uma outra forma, não há mais moralidade na política, a religião não é mais o que determina as relações sociais e a política. A concepção de política passa a ser vista como o homem tendo discernimento sobre as suas escolhas políticas podendo estudar e colocar em prática o que ele acredita ser melhor dependendo das relações de força do governo. Uma das lições que Maquiavel apresenta no segundo capítulo é sobre os ensinamentos que as experiências passadas tem para nos mostrar, como exemplificou:

Com o crescimento da população, os homens se reuniram e, para melhor se defender, começaram a distinguir os mais robustos e mais corajosos, que passaram a respeitar como chefes. Chegou-se assim ao conhecimento do que era útil e honesto, por oposição ao que era pernicioso e ruim. Viu-se que quem prejudicava o seu benfeitor provocava nos homens sentimentos de ira e de piedade pela sua vítima. Passou-se a detestar os ingratos, a honrar os que demonstravam gratidão; e, pelo temor de sofrer as mesmas injúrias que outros tinham sofrido, procurou-se erigir a barreira das leis contra os maus, impondo penalidades aos que tentassem desrespeitá-la. Estas foram as primeiras noções de justiça (MAQUIAVEL, 2008, p.24).

Após o conhecimento pelos cidadãos sobre as questões de justiça, ao se escolher um governante os requisitos mudaram, já não estavam interessados em escolher o mais corajoso, mas sim o homem que mais respeitasse as noções de justiça. Há uma mudança na mentalidade política dos homens a partir do Renascimento italiano. Uma nova forma de ver as relações sociais, uma ruptura na forma de pensar velha dá espaço para uma nova.

Lições metodológicas em Aristóteles e Nicolau Maquiavel

Com base nessas informações acerca dos contextos históricos em que as obras foram escritas, vamos nos ater as lições metodológicas que os autores nos apresentam. Também como uma forma de sistematização do seu pensamento. As obras são de grande valia no que se trata de métodos e metodologia científica.

Aristóteles, nos traz uma questão de metodologia a partir da empiria para entender como ele realizou a sua obra “A Política”. Como o autor chegou a tais critérios e conceitos e não outros. Sua primeira proposição nos traz a luz a sua metodologia, o autor diz:

Como não podemos conhecer melhor as coisas compostas do que decompondo-as e analisando-as até seus mais simples elementos, comecemos por detalhar assim o Estado e por examinar a diferença das partes, e procuremos saber se há uma ordem conveniente para tratar de cada uma delas (Aristóteles, 2006, p. 02). 

Nesse sentido, Aristóteles inicia o seu escrito desenvolvendo os conceitos mais simples para os mais complexos. Uma forma de estudar desde o princípio a formação dos Estados, começando em como as famílias se organizam para entender como essa sociedade está organizada, estruturada e como elas funcionam. É uma contribuição histórica valiosa para entender outras questões que são apresentadas na obra como a escravidão e a submissão das mulheres.

Para tanto, o autor exemplifica na seguinte passagem:

Após ter indicado quais são as partes que constituem o Estado, devemos, já que os Estados são formados de famílias, falar primeiro do governo doméstico. Uma família completamente organizada compõe-se de escravos e de pessoas livres. Mas como só se conhece a natureza de um todo pela análise de suas partes integrantes, sem exceção das menores, e como as partes primitivas e mais simples da família são o senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos, convém examinar quais devem ser as funções e a condição de cada uma destas três partes (Aristóteles, 2006, p. 12).

Nessa linha, Aristóteles categoriza e classifica a família como uma parte mais simples até chegar na complexidade de um Estado. A família, enquanto uma instituição, será organizada para a gestão do Estado com as suas virtudes visando a melhor forma de governo. Como ele descreveu, os escravos não faziam parte do Estado como participantes ativos de mudanças e opiniões, eles não existiam como detentores de direito.

Dessa forma, há duas categorias de sujeitos. Aristóteles acreditava que a condição de escravos subordinados aos seus senhores acontecia de forma natural, uns nasceram para comandar enquanto outros para servir. Em suas palavras, a função dos escravos na pólis consistia em servir aos homens.

Os homens dotados de plenos direitos no Estado, tinham possibilidade de realizar tarefas consideradas superiores como a política e a filosofia. Segundo o autor, há um critério essencial no processo científico que se baseia no tempo livre para o que entendemos como o longo exame analítico do qual a ciência exige, para o julgar com o rigor científico necessário. Esse pensamento se justificava com a naturalização da escravidão na Grécia Antiga. Outro ponto que podemos considerar sobre esse tempo ocioso dos homens é em relação à participação política, os homens livres tinham tempo livre para participar das assembleias na Ágora.

Aristóteles indagava-se sobre a forma organizativa:

Quanto ao homem e à mulher, ao pai e aos filhos, quais são as virtudes próprias a cada um deles? Qual deve ser a maneira de viverem juntos? O que devem buscar ou evitar? Como devem praticar tal coisa e abster-se de outra? É o que é indispensável examinar quando tratamos da política (Aristóteles, 2006, p. 30).

Essas eram as questões norteadoras para se definir como seria uma boa forma de governo que até hoje é uma questão complexa na política. Na concepção aristotélica, a melhor forma de governo é uma visão idealista que tem como mote a felicidade em viver bem dos cidadãos.

Já para Nicolau Maquiavel – em Comentários sobre a primeira década de Tito Livio, o autor propõe uma continuidade com o método utilizado por Aristóteles que tinha uma visão idealista. Maquiavel observava e analisava a realidade.

O autor, compreendeu que o melhor mecanismo para desvendar o funcionamento da política não é uma teoria que antecede, mas sim, tendo como fundamento o uso da historicidade, para compreender o passado e que orientará o entendimento do presente e do futuro. É uma nova forma de pensar a política a partir de experiências concretas.

A metodologia de Maquiavel, nesta obra, tem como referência a análise de casos particulares históricos voltados, principalmente, a Roma Antiga, para a partir dos acontecimentos da República Romana construir uma teoria. Em suas palavras:

Não posso deixar de me espantar – e de queixar-me – quando considero, de um lado, a veneração que inspiram as coisas antigas (bastaria lembrar como se compra, a peso de ouro, um fragmento de estátua que se deseja ter junto a si, como adorno da casa: modelo para os que se deliciam com a sua arte, esforçando-se por reproduzi-la); de outro, os atos admiráveis de virtude que a história registra, nos antigos reinos e repúblicas, envolvendo monarcas, capitães, cidadãos, legisladores, todos os que trabalharam pela grandeza da pátria. Atos mais friamente admirados do que imitados (longe disto, todos parecem evitar o que sugerem, de modo que é pouco o que resta da sua antiga virtude) (Maquiavel 2008, p.17).

Sob a perspectiva de Maquiavel, podemos compreender que a história serviu como base para as análises e especialmente para que não fosse cometido os mesmos erros do passado. A análise não corresponde a uma mera reprodução ou transposição do que aconteceu no passado. A história será um instrumento para a análise concreta da realidade.

O método indutivo traz a ideia de imitação que não tem a ver com uma reprodução no sentido de extensão, mas sim, com uma inspiração, pois para o autor tem uma questão de linearidade entre quem somos e o modo como agimos em sociedade. Colher as experiências do passado para conseguir explicar os problemas e encontrar soluções para o contexto vivido. Mas não de uma forma fatalista, Maquiavel nessa obra acreditava que as lições da história poderiam ser um forte instrumento para extrair o que tinha de proveitoso de cada experiência.

O que faz um clássico ser um clássico?

Além das lições metodológicas que pudemos extrair dessas obras, outras reflexões provocadas a partir das obras desses autores foram: o que leva um clássico a se tornar um clássico? Por que esses autores ainda continuam sendo lidos? Por que como tantos outros autores Maquiavel e Aristóteles tem um lugar obrigatório nas discussões de política? E porque ler os clássicos?

Um esboço e uma primeira tentativa de resposta pode ser no que concerne à atualidade dos temas abordados. Quando lemos os autores considerados clássicos devemos ter em mente a sua historicidade, o contexto cultural, político e econômico em que foi escrito as obras para não cometermos anacronismos ao lê-los. Aristóteles tinha como direção a busca pela resposta de qual seria a melhor forma de Governo e Maquiavel a partir dos exemplos concretos da Roma antiga, um exemplo de uma república bem sucedida, mas também com suas falhas, observar na concretude os acontecimentos políticos daquele momento.

Ao escolhermos um tema para estudarmos, o primeiro passo a se fazer é a busca pela origem e o contexto. A exemplo da Política ou da Democracia, retomamos ao início para entender as suas origens, desenvolvimento e os motivos pelo qual pôde surgir esse conceito e no momento histórico em que nasce.

O pensamento de Maquiavel só foi possível devido ao momento histórico em que ele vivia, a sociedade que ele observou estava passando por uma ruptura a passos largos de mentalidade sobre política. Nesse momento, ele inaugura e coloca uma questão: a política deve ser separada da moral cristã, como acontecia no período medieval. Há, portanto, uma ruptura, uma proposta de olhar a sociedade a partir de uma outra visão. Olhar a sociedade a partir de uma perspectiva de concretude, de analisar a realidade. Considerações que são contribuições valiosas para a Ciência Política nos dias atuais.

Gramsci, por exemplo, fez uma leitura atual sobre O Príncipe de Maquiavel. Na leitura de Maquiavel, Gramsci mostra a sua atualidade a partir de algumas considerações. A afirmação de que a política é uma atividade independente e autônoma com princípios e leis que diferem da moral e da religião.

E como outra contribuição, Maquiavel teorizou uma prática, acontecimentos reais. Bem como, apontou que além dos que dominavam o Estado, também havia o povo, e que deveria existir um chefe de uma camada popular para representar e defender um povo que sabe o que quer, Maquiavel ainda cita que os interesses desse representante devam diferir da religião e da moral (GRAMSCI, 1981).

Gramsci chama atenção para questões que são atuais a partir das contribuições de Maquiavel. Assim como outras obras clássicas podem nos auxiliar em nossas reflexões. Essa é uma reflexão inicial para uma questão complexa a ser refletida e analisada com mais aprofundamento.

Considerações finais

As questões colocadas neste texto são iniciais e precisam de um maior tempo para uma análise aprofundada. Mas nos dá um caminho de reflexões para não cairmos em um discurso raso e fácil que tanto se propaga, principalmente, pelos pós modernos e em outros discursos contra o conhecimento científico lançados por representantes de direita.

Precisamos defender a ciência e as contribuições dos autores que vieram antes. Observando cada um em seu tempo e contexto histórico. As teorias não nos servem para fazer aplicações em lugares e tempos diferentes. Maquiavel já nos mostrou que devemos considerar a historicidade, mas que ao analisar casos de experiências do passado não nos esqueçamos de observar a realidade concreta.

Aristóteles apresentou que ao descrever o conceito do mais simples ao mais complexo conseguimos entender como a sociedade está organizada, qual a sua forma estrutural e o que podemos entender das relações sociais a partir disso. Os conceitos elencados pelos autores sistematizam e facilitam a escrita a explicação de fenômenos sociais.

Aristóteles e Maquiavel contribuem significativamente para o método empírico. Em suas obras fica explícito o método utilizado, a observação da sociedade para entender como ela funciona. Maquiavel, além da empiria, também se utilizou do método comparativo, ele buscou as obras, cartas do Tito Lívio para fazer uma comparação do que poderia lhe ser útil para fazer as suas análises.

Por fim, os autores em questão sistematizaram os seus estudos sobre política de uma forma que conseguimos extrair o que tem de útil e atual, pois utilizaram-se cada um a seu modo da historicidade dos fatos para construir uma teoria sobre política. Os clássicos produziram modelos de análises que podemos exprimi-los para fazer comparações, com suas devidas ponderações, considerando o tempo e o contexto histórico. Questões que são atuais e ainda hoje procuramos a melhor forma de respondê-las. 

A questão que não pode ser deixada de lado é a lente que iremos utilizar ao ler os clássicos, se vamos compreender historicamente o momento histórico em que o autor produziu a sua obra ou se vamos tapar nossos olhos para esse fato e descartar contribuições riquíssimas.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. A Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

GERRATANA, Valentino. Cuarderno 4 (XX) 1930. In: GRAMSCI, Antônio. Cuadernos de la cárcel. 2.ed. Edición crítica del Instituto Gramsci a cargo de Valentino Gerratana. Puebla: Ediciones Era, 1981 (Tomo 2).

MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.