GEHLAL

Post do mês de junho de 2025:

Pequeno mergulho na relação entre o Brasil e a indústria relojoeira suíça

por Annelise Erismann

Foto da capa da revista “Elegância e Precisão” do ano de 1955 (número 54)

No post do mês anterior, eu tentei esboçar um pouco do que seria a nossa linha de pesquisa por aqui. Acho que a grande dificuldade consiste em convencer o leitor ou a leitora que há sim muitas formas na quais a indústria relojoeira suíça possui uma conexão histórica e quase que intrínseca com o Brasil. Intuitivamente, a gente poderia fazer a conexão imediata com o extrativismo de minérios e pedras preciosas e o que este acarreta dentro do país. No mais, seria difícil encontrar um outro viés, no qual este sub-nicho da indústria de luxo mundial interessaria a alguém no Brasil para além da elite Odete Roitman (ao mesmo tempo que, em si, julgo importante almejar o estudo da elite Odete Roitman, que apresenta recortes cada vez mais inesperados). Voltando a nossa questão inicial sobre a relevância desta linha de pesquisa para o Brasil: Afinal, quem tem dinheiro pra comprar um relógio suíço do que chamam de alta gama, pra além do Neymar Jr. e da Anitta?

Talvez adentrar o mundo da publicidade dita relojoeira seja uma forma de cogitar um contexto no qual as articulações entre agentes da indústria relojoeira no Brasil nos ensinam algo importante sobre a história do nosso país.

Dos meados dos anos 50 aos anos 70, o dito Escritório de Documentação Industrial/Publicidade Relojoeira, localizado em Genebra, produziu revistas com intuito de viabilizar uma maior conexão entre vendedores, relojoeiros, importadores e exportadores de relógios suíços mundo afora. Na América Latina, esta publicidade se estendia a Argentina com a “Elite”, ao Uruguai e à Venezuela com a “Vida Doméstica” (para além da Time Internacional em espanhol). É engraçado ver que, mesmo que haja alguma sensibilidade às particularidades nacionais, ao menos em um anúncio mais esdrúxulo no volume 56 da revista brasileira “Elegância e Precisão”, mal se concebe a América Latina como entidade autônoma. Uma fábrica suíça de relógios busca parceiros para exportação “para Portugal e possessões, Espanha e colônias.” (página 24).

Encontramos por sinal traços da existência desta revista nos arquivos digitalizados da revista suíça EuropaStar, que é publicada até hoje e que traz as novidades do mundo da relojoaria. Nestes arquivos, encontramos seus 24 volumes – publicados de 1955 a 1962.

A revista era publicada por E. de Araujo e tinha um escritório de publicação em São Paulo, distribuindo também para o Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Em suas páginas, os lugares mais provincianos na Suíça (como por exemplo, Monthey no cantão de Valais, a cidade de La Chaux-de-Fonds, ou a cidade onde moro, Biel/Bienne) ganham conotação universal, sendo catapultadas a palcos de acontecimentos de importância global. Certamente, por algum motivo que nos escapa, o público brasileiro da revista em 1954 tinha mesmo que ler sobre um evento reunindo o então presidente da Câmara suíça de relojoaria, o então presidente do governo valaisano, um general e professor de organização industrial em Harvard e um professor de química mineral na Universidade de Lausanne (pg. 10, vol. 54 de 1955). Utilizando-nos da mesma lógica, de criticar o universalismo europeu, chegaríamos à conclusão de que, com tanto problema importante no Brasil, talvez não faria sentido algum continuar a escrita deste texto. Por que diabos nos interessaria revisitar seus arquivos agora?

Voltando à apenas mais uma ramificação brasileira do capitalismo europeu, portanto, à tal revista e à elite dependente que a lê: Aos nossos olhos, a Elegância e Precisão poderia ser facilmente reduzida a um tipo de catálogo publicitário do mundo relojoeiro, por ser repleta de anúncios sobre empresas montadoras de relógios. Em suas páginas, aprendemos algo sobre os modelos de relógios que estavam em voga neste período – por exemplo, relógios-pulseiras, relógios delgados, relógios com movimentos complexos, entre outros. A revista nos possibilita também entender o impacto de algumas inovações tecnológicas da indústria – por exemplo, a implementação da tecnologia de quartzo agatoide (vol. 98 de 1962, pg. 21), o uso de uma nova liga de ouro que também era usada na odontologia (vol. 100 de 1962, pg. 24) e a normalização de amortecedores de choque para relógios. Alguns setores correlatos, vendedores de cofres fortes, seguradoras, empresas que produzem agulhas para gramofones, também anunciam nesta. Há ainda discussões de fundo sobre acontecimentos geopolíticos relevantes, artigos sobre técnicas de reparação relojoeira e pequenas notas sobre mudanças no regime de importação da indústria relojoeira – por exemplo, quando da passagem de lei nos Estados Unidos que impõe a menção da origem do produto (a gravura “feito em” na parte de trás de um relógio, vol. 99 de 1962); a exemplo de mudanças na exportação de couros curtidos de jacaré e animais selvagens do Brasil (vol. 59, 1955, pg. 23), ou pela crescente concorrência japonesa frente à indústria europeia (vol. 97 de 1962, pg. 17). Além disso, quaisquer outras ameaças à estabilidade deste setor, como notícias sobre contrabandos revelados em determinados países ou até anúncios da morte de agentes do patronato da indústria relojoeira (em uma seção denominada “necrologia”), também merecem atenção.

Há, por fim, todo tipo de “classificados”: anúncios de relojoeiros oferecendo seus serviços, ou empresas alemãs, suíças ou francesas em busca de importadores e artigos sobre a história da indústria relojoeira em determinado país, salientando nomes históricos que tenham alguma ligação com a indústria relojoeira (do estilo: “Você sabia que o escritor do Barbeiro de Sevilha também foi relojoeiro?” Ver volume 99 de 1962). Um aspecto interessante é quando a Revista propõe concursos entre seus leitores. Na pg. 13 do volume 62 de 1961 por exemplo, o ganhador colombiano de uma competição de textos de marketing sobre uma determinada marca escreve uma cena na qual o comprador fictício de um relógio, feliz com o seu funcionamento após a introdução de um amortecedor de choques suíço durante os trabalhos de reparação, faz a seguinte observação: “A estes suíços, ninguém ganha em precisão.”

(Um parêntese portanto: o preço de um relógio suíço seria justificável pela precisão incomparável do instrumento de medição do tempo e pelo uso de materiais de qualidade única na construção dos relógios).

Foto de uma propaganda na revista no número 54 de 1955, pg. 5

Outra função fundamental da revista é a de resumir eventos comerciais importantes para esta indústria, tais quais a Feira de Hannover ou de Hamburgo, vistas como eventos importantes para a indústria relojoeira alemã, ou a Feira da Basileia, crucial até então para a indústria relojoeira e a Câmara de comércio suíças. Há observações esporádicas sobre o que também move as indústrias de luxo, com primazia do que se passa na relojoaria e gemologia francesas, italianas e britânicas.

Excurso necessário: Medir o tempo de quem?

Sugiro uma pausa para pensarmos no que é a indústria relojoeira alemã neste momento. O que significa, em 1955, a Feira de Hannover – organizada em um país mal saído do pós-guerra, ainda ocupado pelos EUA, partido pela Guerra Fria e “desnazificando” suas instituições? A revista descreve o evento como sendo potencialmente “uma bela demonstração de renascimento do País.”  (pg. 37, vol. 54, 1955).

No mesmo sentido, soa ser no mínimo um pouco míope ver uma empresa chamada Gebrueder Junghans comemorando seus cem anos de medição do tempo “ao serviço do progresso” (pg. 2, vol. 94, 1961) e outras tantas empresas alemãs publicando na revista (vide a Sternkreuz abaixo com um logo meio deselegante pro pós-guerra, vol. 90, 1961, pg. 39).

 

Uma estranheza similar surge quando lemos as reportagens sobre a representante da fabricante dos relógios Piaget na Espanha, encontrando a esposa do General Franco (vol. 91, 1961, pgs. 8 e 9) – a mesma empresa que encantaria, no mesmo ano, representantes civis e militares da elite do México (vol. 93, 1961, pg. 16).

 

Talvez o tempo não permita tanto revisionismo histórico e faça com que tenhamos sim um justo incômodo ao ver este setor tão abertamente dependente do fascismo espanhol, por exemplo. Como muitos outros setores da economia sob a Guerra Fria, a relojoaria mundial se encontrava igualmente com os olhos pra lua: Como medir o tempo agora que o homem chega à lua, este mais novo símbolo do progresso e da liderança capitalista (ver foto do anúncio da empresa Eska, vol. 65, 1956, pg. 8)?

 

 

O que seria descolonizar a medição do tempo e ultrapassar a narrativa de inovações tecnológicas que nos permitiram ir da “Pré-história à descoberta do átomo” – para retomar o título para uma exposição em Genebra no ano de 1954 (vol. 55, 1955, pg. 21)? Quem são os senhores do tempo quando nos confrontamos com o comentário seguinte, encontrado no volume 58 (1955), pg. 30, sobre o funcionamento da indústria extrativista de diamantes na Birmânia.

“A primeira inspeção e recolha das gemas maiores e mais preciosas é feita por um europeu. Os indígenas que trabalham na empreza estão sempre vigiados por um capataz da companhia, e são obrigados a ter a cabeça tapada com uma espécie de barrete-máscara que, sem os impedir de ver e respirar, evita que metam na boca seja o que for. Isto foi feito porque alguns indígenas ingeriam as gemas… uma vez encontrados os rubis de maior tamanho, as mulheres encarregam-se de procurar, entre a areia, os rubis mais pequenos que se utilizam em relojoaria.”

No mesmo volume (pg. 35), o dono de uma empresa relojoeira alemã, havendo ido a negócios e “se apaixonado” pelo Havai, afirma:

“Gostaria de saber, quem nesta ilha tão feliz se interessasse pelas horas que passam. O que se refere a mim, nunca adquiria um relógio, pois nesta ilha basta saber somente, quando o sol se levanta e quando se põe.”

O volume 59 vai além e proclama o relógio um “objeto útil e precioso (da) Humanidade” (pg. 10). O relógio mais complicado do mundo, trazido a Portugal pelo Rei D. Carlos I em 1904, chega a materializar a dita linha abissal (ibid., pag. 32-33) – o relógio mostra o estado do céu no hemisfério boreal (Paris e Lisboa) junto com o céu no hemisfério austral (Rio de Janeiro). Correndo o risco de soar niilista, o que é o tempo para os senhores do tempo se não algo que nos permite medir graus de uma colonização aparentemente insuperável?

Voltemos desta pausa necessária para analisarmos a estrutura da revista.

Uma chamada da Feira Suíça de Relojoaria da Basileia, evento reunindo homens do mundo todo (vol. 54, 1955, pg. 14)

Algumas contribuições eram recorrentes, tais quais a coluna sobre “o monopólio mais bem organizado e mais poderoso que o mundo jamais conheceu” (vol. 55, 1955, pg. 30), o mercado de diamantes: “Sem esta estabilidade, os diamantes não poderiam desempenhar o papel de ‘moeda’ internacional. E por este motivo que se compram diamantes para depositar como reservas nos cofres fortes, como medida de proteção contra inflações ou como riqueza transportável para os dias piores.” (ibid., pg. 32). Nos primeiros números da revista, encontramos artigos e observações quase avulsas sobre a dita expansão da indústria diamantista israelense (vol. 91, 1961, pg. 12), os conflitos na área de mineração do Cassai no Congo (vol. 56, 1955, pg. 39) e o uso de diamantes industriais (vol. 97, 1962, pg. 25). Esta coluna acaba sendo posteriormente no início dos anos 60 apadrinhada por um mercador de diamantes na Antuérpia (I. Komkommer). E é importante entender que a gemologia é parte integrante da indústria relojoeira, pelos trabalhos decorativos feitos sob um relógio, mas também pelo simples fato que um relógio de luxo mecânico possui rubis (ver foto abaixo de um protótipo, vol. 54, 1955, pg. 12).


Há de se notar ainda que outras notificações de eventos geopolíticos de caráter economicamente interessantes para os leitores desta revista aparecem primordialmente na seção “Noticiário”. Por exemplo, há artigos, ainda que curtos, sobre os processos de regionalização do comércio livre na Europa (vol. 97, 1962, pg. 6) e na América Latina (vol. 90 de 1961, pg. 23). Julga-se igualmente importante escrever quando jazigos de minérios e petróleo são encontrados no Brasil (vol. 59, 1955, pg. 8 e vol. 65, 1956, pg. 11) ou na Rodésia do Sul (atual Zimbabue), (vol. 96, 1962, pg. 37). O corpo editorial parece ainda se interessar quando militares em satélites americanos experimentam com a sincronização do tempo ou medem níveis de radioatividade (vol. 97, 1962, pg. 17). Na mesma verve, encontramos artigos sobre outros receios militares, referentes ao uso de marcadores luminosos a base de um material químico chamado Trítio, Trício ou Tritão, chegando inclusive a proibição de uso destes relógios em navios nucleares britânicos. Hoje em dia, este material é no mínimo motivo de discussão por seu potencial radioativo, mas em 1962, ano de publicação dos volumes 97, 99 (ver pg. 26) e 101, este material anda era largamente comercializado.

Ainda primordialmente no “Noticiário”, encontrávamos notas esporádicas sobre o aumento do custo de vida no Rio de Janeiro ou Brasília, ou a estabilização da moeda brasileira vigente, ao lado de colunas com recomendações a vendedores sobre como atrair sua clientela (por exemplo, englobando táticas de venda e sugestões sobre como iluminar uma loja).

Almejava-se por fim um toque de leveza e cultura por sessões avulsas e não-contínuas de capítulos de livros traduzidos sobre a técnica relojoeira, poemas ou piadas sobre o tempo ou a medição do tempo. Com frequência, as piadas baseavam-se em uma visão pejorativa de pessoas vistas como subalternos ao público leitor. Lembro da piada, contada na página 17 do volume 63 (1956), sobre os lavradores que, sem relógios, se guiavam pelo sol, regando as plantas apenas nos dias de sol. Ou ainda, uma piada sobre um mero mecânico de locomotivas que vinha conversar com o relojoeiro com ares de sabido, comparando a técnica de uma locomotiva a de um relógio de luxo (vol. 65, 1956, pg. 35). Ou ainda, de um caipira, que, subitamente detentor de um relógio suíço, não consegue associar o mal funcionamento do balanço do seu relógio com a presença de um simples cisco – o que lhe acarreta uma fatura de cem cruzeiros, emitida por um relojoeiro esperto. São as piadas que nos mostram a importância de cruzarmos uma fronteira na análise desta revista: da geopolítica da indústria relojoeira à uma questão mais micro, referente às relações sociais, e não por isso menos interessante.

O gênero do tempo

Um aspecto muito interessante da revista era de que forma ela praticava uma forte segmentação por gênero na sua interpretação do que movia a indústria de luxo da sua época. Grosso modo, se os artigos sobre detalhes técnicos ou o comércio de relógios era uma “leitura para homens” – implicitamente interessados nos progressos da engenharia industrial e do comércio mundial – havia sempre uma seção dedicada “às senhoras”. Esta consistia em traduções e republicações de artigos da revista feminina alemã Madame e da revista francesa Vogue. Tendencialmente, estes artigos nada mais eram do que fotos de modelos vestindo marcas ainda existentes, como Christian Dior, Balmain, Givenchy, Balenciaga e outras tantas.

Foto de um artigo no número 56, 1955, página 40

Anúncio da revista alemã Madame, no volume 56, 1955, pg. 33

Não era só da indústria têxtil que deveriam viver as mulheres da elite brasileiras! A indústria de diamantes e a gemologia no geral teriam o potencial de interessar as mulheres por motivos igualmente generificados: por exemplo, há um valor sentimental dito muito importante nos diamantes se considerarmos o processo de socialização feminina – a revista destaca, por exemplo, que nos Estados Unidos, o anel de noivado deve ser cravejado de diamantes. (vol. 55, 1955, pg. 30)

Além disso, joias e diamantes conseguiam redefinir e realçar as qualidades (ou aliviar os defeitos) do corpo de uma mulher:

“As joias, criteriosamente selecionadas, são capazes de fazer realçar a beleza de uma cabeça bem conformada, de uns ombros bem modelados, de uns braços bem torneados e de umas mãos finas; podem fazer destacar a elegância de uma cintura ou chamar a atenção para a formosura de uma cabeleira.” (Sobre brincos….) “é possível dar a um rosto redondo uma impressão de feições mais longas usando brincos compridos, isto desde que o pescoço não seja demasiadamente baixo.” (vol. 59, 1955, pgs. 7 e 8).

E finalmente, um relógio de luxo, que é joia, mas também medidor do tempo, poderia ser vital na organização do cotidiano de uma mulher da elite. Se o tempo de um homem de negócios é curto, o da mulher do homem de negócios é determinado por seu gênero. Se não fosse, como deveríamos então entender a propaganda de uma marca de despertadores abaixo, que patrocina a revista? O despertador serve “para a dona-de-casa controlar os quitutes no forno, para a mamãezinha alimentar o bebê na hora certa.” (vol. 90, 1961, pg. 2). Sem contar com a função social de controle que pode vir a exercer um relógio de pulso, como este da empresa Sindaco – um relógio, “do gênero ‘escrava’, para ser usado com traje de noite.”

Herdeiros desta história, não surpreende que a própria Rolex, a líder do mercado relojoeiro suíço até hoje, vende nesta época seus relógios “(a)os homens que dirigem os destinos do mundo.” – seja na ONU (vol. 63, 1956, última página) ou no jornalismo internacional (vol. 90, 1961, pg. 49).

Comentários, sugestões, críticas sobre este post?

Escreva para annelise.erismann@gmail.com