As últimas polaroids dos senhores do tempo na América Latina
No último post, havíamos analisado os vinte e quatro números da revista Elegância e Precisão, que servia à sua época como um verdadeiro Caderno do Importador de relógios suíços e de diamantes do e para o Brasil. Relembramos aqui que o Brasil, em 1968, era o terceiro maior importador desta indústria (vol. 103, 1968, pg. 94). Reitero, logo no início deste post, que acho o setor relojoeiro particularmente interessante por servir de um exemplo da globalização suíça no Sul global – possivelmente neocolonizador, mas sempre dependente do imperialismo estadunidense. Não por nada, os Estados Unidos permanecem os maiores consumidores de relógios suíços no mundo.




Vol. 164, 1978, pg. 34
vol. 136, 1973, pg. 26 Vol. 164, 1978, pg. 31




Como entender o Brasil como o lugar da produção? Ou: O que pode significar a Zona Franca de Manaus para empresas relojoeiras suíças? (Vol. 168, 1979, pgs. 19 & 22-23)

Vale, portanto, analisarmos uma outra revista da mesma leva, que é, desta vez, dedicada à América Latina. O escopo da análise aqui presente é obviamente reduzido quando nos deparamos com os 228 números desta publicação. Por este motivo, não alego que iremos analisar a revista, mas apenas apresentar a/o leitor/a algumas polaroids dos senhores do tempo na América Latina.
Nosso foco não é necessariamente em uma análise do discurso, mas puramente da imagem. As observações do último post sobre as relações de gênero na indústria, ao menos das hipóteses que podemos levantar sobre estas através do marketing vigente no período citado, serão deixadas um pouco de lado no atual post. Claro que é impossível não ver gênero na nova revista sendo analisada: Suas colunas de piadas ainda estão repletas de contos sobre invenções de relógios uteis ao patriarcado. Por exemplo, nos deparamos com um relógio que “prevê” o estado de espírito de um marido através da medição do tempo no qual o tal marido abre a porta em sua chegada à casa (1942, p. 13).
Ou ainda, um relógio que mede o tempo real de um casamento infeliz versus o tempo em um affair com uma mulher bonita. Ou ainda, um processo de cravagens de nomes invisíveis na aliança que é tão inovador que permite a sua reutilização em um segundo casamento (vol. 3, 1942, p. 13). Há, até mesmo, uma piada sobre feminicídios (aonde o feminicida, havendo matado a família toda, inclusive a sogra, utiliza da ausência da sogra em sua nova vida para sua própria defesa – como indicador de quão coitado ele é, já que, “nem sogra tem” (1942, vol. 2, p. 13).
Do mesmo jeito, tomamos também a decisão de deixarmos um pouco a crítica descolonial do post atual, ainda que esta seja tão evidente, principalmente quando a revista preza, na ocasião da celebração dos 650 anos da Constituição suíça em 1941, as formas nas quais a “dura vida nas montanhas, do clima e do trabalho árduo (haveria) forma(do) a resistência física e moral insuperável do povo suíço.” (vol. 1, 1942, p. 24).
Até mesmo o interesse marxista cede no atual post. Obviamente, é interessante lermos sobre como as exportações são limitadas dentro e fora da Europa durante a guerra – que é, por sinal, um outro divisor de águas na história da indústria relojoeira suíça – devido ao controle de carvão e ferro, que levaria até mesmo a coleta de objetos em metal em desuso na Suíça (vol. 1, 1942, p. 32). E interessante reencontrarmos nas páginas da tal revista latinoamericana publicidades bancárias alertando importadores sobre as restrições bancárias entre a Suíça e a Argentina vigentes durante a guerra (vol. 2, 1942, p. 7). De modo geral, é de interesse publico ler sobre a parceria histórica entre o complexo militar industrial e a indústria relojoeira, ao exemplo de como relógios suíços são utilizados pela Marinha espanhola (Vol.127, 1972, pg. 21) ou em missões espaciais, dentre muitos outros, para os quais este post não teria possibilidade de dar o devido espaço.
Marxistas estariam ainda talvez mais interessado/a/s em ler sobre como a Secretaria de Comercio dos EUA já conduzia estudos sobre as quantidades de reservas de ouro na América Latina (vol. 3, 1942, pg. 18). Ou na mesma verve, que comerciantes de diamantes são retratados na edição latino-americana da revista como cidadãos de uma quase-nação, seguindo seus próprios interesses e leis, na qual confiança mútua e “um aperto de mãos pode valer milhões” (vol. 147, 1975, pg. 77):

Comerciantes de diamantes na bolsa da Antuérpia. (Vol. 147, 1975, pg. 73)

De uma romantização da guerra no passado distante… (Vol. 91, 1966, pgs. 50-51)

… a uma romantização da guerra naquele presente. (Vol. 131, 1972, pg. 11)

Ainda sobre a globalização suíça. (Vol. 1942, pg. 11
Inicialmente chamada La Revista Relojera (1942-1948), a revista foi rebatizada com o nome Estrella del Sur (1952-1965), se tornando Europa Star em 1966 até o fim da sua publicação em 1979. A análise que aqui segue, de uma revista que já é mais abrangente no seu escopo geográfico, é muito mais superficial: dos seus 228 números, analisamos com afinco apenas os 54 que foram publicados nos anos 1970.
O foco nos anos 70 é minha escolha, já que é nesta década que a indústria relojoeira suíça é abatida por uma revolução industrial ligada a proliferação de relógios eletrônicos que funcionam sob a tecnologia quartz. Neste período, estes relógios vêm principalmente do Japão e da Coréia do Sul. Basta pensarmos, por exemplo, nas marcas Casio, Technos, Seiko ou Mikaido. Por sinal, estas empresas começam neste período a investir pesado no marketing dos seus produtos na Europa Star (ver vol. 167, 1979, pg. 48; Vol. 162, 1978, pg. 19).
Os efeitos da competição asiática na Suíça são claros: no país, a indústria padece sob uma crise empregatícia (ver vol. 153, 1976, pg. 21), que dá margem a um paro parcial de trabalhadores/as, confrontados/as com a introdução estrutural de jornadas de trabalho reduzidas. Até nas páginas da EuropaStar, observamos como as práticas de outsourcing da produção se fortalecem neste período (ver, por exemplo, a carta da empresa Roventa-Honex se posicionando contra o outsourcing promovido por competidoras suíças, Vol. 167, 1979, pg. 7)
A chamada crise do quartz se torna, portanto, um divisor de águas na cronologia deste setor. Citando a propaganda da empresa Seiko: “Algum dia todos os relógios serão fabricados assim.” (ver vol. 147, 1975, pg. 23). Ou relembrando o lema da empresa Casio sobre seus relógios: “Casiotron. Os relógios que estabelecem uma nova norma.” (Vol. 167, 1979, pg. 59; ver também ibid., pg. 61).
Sobraria, portanto, a/o/s Suíço/a/s reagir à ameaça asiática com uma renovação do discurso de distinção: Para alguns publicitários, haveria a possibilidade de promover como a indústria de relógios mecânicos, únicos por sua tecnologia dependente da energia produzida pelo próprio corpo (Vol. 160, 1970, pg. 45, pg. 44), poderia sim coexistir com os tais relógios eletrônicos, o que levaria afinal a uma nova segmentação do mercado (vol. 158, 1977, pg. 88; Vol. 155, 1977, pg. 43). Outros publicitários vendem outros horizontes, promovendo, por exemplo, a incorporação da tecnologia quartz pelas empresas de renome suíço em seus catálogos – afinal, elas poderiam se dar a esse luxo, por serem empresas cuja reputação era justificada pela relação entre alta qualidade de seus produtos e alto valor da sua produção. Isto significaria que, grosso modo, elas poderiam sim se render a produção de relógios em quartz, ao mesmo tempo que conseguiriam também se distinguir de outras formas, e possivelmente, se manter no mesmo segmento superior (vol. 159, 1977, p. 20; Vol. 1960, 1970, pg. 18).
Entraríamos então em uma fase da produção de uma tecnologia quartz superior (Vol. 167, 1979, p. 23); da produção de relógios ultrafinos (Vol. 156, 1977, pg. 7; Vol. 167, 1979, pgs. 44-45), com gravuras e indicadores em muitos idiomas (Vol. 162, 1978, pg. 71). Desta mesma fase, vemos também como outras inovações, tais como os relógios eletrônicos movidos por energia solar, se inspiram até mesmo do paradigma de renovação energética europeia (ver adiante e também vol. 163, 1978, p. 48; Vol. 156, 1977, pg. 25).

Vol. 156, 1977, pg. 21
Este alinhamento à uma renovação energética é, claro, ambíguo. Neste breve olhar pelo retrovisor, se torna igualmente óbvio como a indústria relojoeira, ainda que principalmente concorrente de outros setores produtores de “presentes de luxo” (vol. 1, 1942, p. 11), tenta se modelar como subjacente a outras indústrias significantes da modernidade. A comparação é feita, portanto, com a indústria aeronáutica (ver foto adiante e também vol. 132, 1972, p. 64) e automobilística (ver foto adiante e também vol. 103, 1968, pgs. 30-31; vol. 1, 1942, pg. 7). Vale também notar como a indústria relojoeira atua como patrocinador histórico de corridas de fórmula 1 (ver adiante e também Vol. 62, 1978, pg. 35). Ainda hoje, as relações entre estes setores parecem intrínsecas. (Um fenômeno semelhante acontece também com o patrocínio de outros esportes de ponta, tais como as Olimpiadas).




O patrocínio relojoeiro não é apenas uma premissa do mundo dos esportes, mas também existe na indústria cultural. Se esta associação não é igualmente natural, ela ainda pode ser decodificada de determinadas propagandas da EuropaStar.
A propaganda de uma máquina de escrever nos anos 40, ou a propaganda de uma caneta com uma tela em LCD nos anos 70, ou ainda, o fato que um artista (ou um escritor, ver Vol. 154, 1976, pg. 17) são celebrados por pintarem ou escreverem sobre relógios podem ser meras anedotas. Fato é que estes pequenos exemplos nos permitem pensar sobre como setores tão dispares como a relojoaria, a literatura, a contabilidade e a arte podem na realidade entrar em diálogo. Ou para perspectivas mais críticas, sobre as formas nas quais o mundo da escrita, das finanças e das artes na América Latina ocupam um mesmo lugar de privilégio e luxo, dos quais regozijam-se poucas famílias na América Latina.
E é dentro destas famílias, por sinal, que a reprodução social latino-americana acontece. Dito de forma mais drástica, é daí que a audiência da tal revista nasce, sendo, portanto, imaginada como produto de consumo para herdeiros e herdeiras e/ou profissionais de categorias da classe média alta, como pesquisadores e médicos, dos quais espera-se que nenhuma iniciação ao que é supérfluo ou luxuoso seja necessária; para quem a herança de um relógio de luxo (ou de forma análoga, de uma profissão criativa e bem-remunerada) constitui uma expectativa concreta.







Tal qual no último post, é na análise do perfil demográfico dos consumidores pressupostos da indústria relojoeira suíça que retomamos a impossibilidade de qualquer observação colorblind/sem gênero das publicidades encontradas neste mesmo meio de comunicação ao longo da década de 70.
Ou como poderíamos não ver que pessoas generificadas como mulheres estão frequentemente nuas (ver também vol. 133, 1973, p. 112, p. 115; vol. 138, 1973, p. 165; vol. 141, 1974, p. 24, Vol. 144, 1975, pgs. 176-177); e que chegamos a identificar uma alusão à uma decapitação em um corpo lido como feminino? (ver foto adiante, encontrada em Vol. 162, 1978, pg. 151).

Um outro ângulo mereceria uma análise por si: Como estudar as representações de homens e mulheres racializado/a/s enquanto negro/a/s neste objeto de marketing da indústria relojoeira publicado nos anos 70? Estes sujeitos políticos são, neste momento histórico, inserido/a/s na indústria de forma dicotômica – geralmente no que concerne a base do extrativismo ou no cume do consumo e raramente na produção.








No cume do consumo de alto luxo, ao menos nos anos 70, também constataríamos crianças e adolescentes (ver também Vol. 149, 1976, pg. 165).

Em guisa de conclusão… novamente inconclusiva!
Viver em uma sociedade capitalista significa atentar-se ao mecanismo cíclico que afeta a indústria de marketing: Esta última opera de acordo com a demanda de consumidores pressupostos, o que a motiva a, empirica- e historicamente, observar e predizer os hábitos de um determinado público-alvo. Sendo assim, todo e toda consumidor/a é passível de objetificação por empresas de determinado setor que procuram calibrar seu poder de convencimento para atrair a atenção de um/a consumidor/-a médio/a, criando neste/-a um sentimento de urgência do consumo e vontade de deter determinado produto. Bourdieu e os/as/es novo/a/es Bourdieusiano/a/es já nos explicaram tudo que precisávamos saber sobre processos de distinção e a indústria de luxo não se difere de outros setores quaisquer da economia capitalista no que diz respeito ao controle do fluxo da mercadoria, do preço, da qualidade e da autogestão em uma economia cada vez mais reputacional. Se nós, os/as ditos/as “millenials”, víssemos hoje propagandas comparando alimentos a joias, seguindo a lógica da ostentação enquanto subsistência, teríamos talvez mais ojeriza do que vontade de comprar ou entendimento pelo apelo estético. Talvez tampouco, nem todos os millenials – uma geração também ambígua e possivelmente criada por publicitários afins – teriam um problema com estas representações.



Talvez os tempos sejam outros ou talvez sejam exatamente os mesmos do que nos anos 70 – no que diz respeito a acumulação do capital. Não há uma nova edição da EuropaStar voltada para a América Latina apenas, que nos permitisse fazer uma análise sobre a evolução da publicidade relojoeira ao longo das últimas cinco décadas – e talvez só este fato já signifique algo. Este post, bem como o post de junho, serviu apenas para apresentar a/o/s cientistas sociais que lêem o blog do GEHLAL o estudo do caso da indústria relojoeira. Se este setor despertou o seu interesse e você tiver questões, comentários ou críticas, envie um e-mail para annelise.erismann@gmail.com. Trabalha no setor e quer trocar figurinhas? Seu comentário também é muito bem-vindo.