GEHLAL

Apresentação Annelise Ersimann

Quando a Professora Joana Coutinho me convidou para fazer parte do corpo de escritoras e escritores do blog do Grupo de Estudos Hegemonia e Lutas na América Latina, eu já havia desistido de submeter um projeto de pós-doutorado sobre a indústria relojoeira suíça ao Fundo Nacional Suíço – uma instituição equivalente à Capes brasileira – devido a enorme instabilidade contratual do sistema acadêmico suíço a longo prazo, e  especialmente após os últimos cortes.[1] Em suma, eu não podia mais me dar o luxo de tanta instabilidade depois de me tornar mãe e enquanto mulher imigrante, branco-parda-indígena no Brasil e racializada na Europa. Trabalhar em uma candidatura à um financiamento suíço tinha sido pra mim até então óbvio porque, ao menos pra mim, aos olhos do público suíço, era evidente que a indústria relojoeira interessaria uma agência de financiamento suíça[2] por tocar em muitas questões do quintal de casa – por exemplo, este setor serviria como um excelente estudo de caso para entender a incorporação laboral de imigrantes de países europeus[3], mas não apenas,[4] ou ainda, a renovação de fluxos migratórios regionais, principalmente da França vizinha ou da Alemanha, ou por fim, a greve feminista que se repete todo ano e tem seu início com a mobilização de trabalhadoras da indústria relojoeira em 1991.[5] E em meio a esta greve que algumas figuras do sindicalismo suíço se destacam, tais quais a social-democrata Christiane Brunner, que morreu no mês passado. Para quem lê do Maranhão, há todo um processo de contextualização importante a ser feito inicialmente: Minha escrita é geolocalmente situada na cidade de Biel/Bienne, cidade relojoeira onde se encontram o segundo maior polo de produção da empresa de relógios Rolex, bem como os museus do grupo Swatch e da marca Ômega. Aqui também se encontra a sede da Federação da Indústria Relojeira Suíça e ao menos uma escola técnica voltada para a formação de relojoeiro/a/s (o BBZ/CFP) até os 25 anos completos. Aos companheiros e companheiras marxistas que possam estar lendo este artigo, bastaria dizer que Marx já havia se interessado pela indústria relojoeira – segundo ele, este setor continha em si um exemplo de produção heterogênea por sua especialização e divisão do trabalho (Bohlhalter, 2016; Grolimund, 2009, p. 21).[1] As e os latino-americanistas que possam estar lendo este post, talvez possam mais facilmente antecipar alguma relação com este setor que nos ajude a melhor compreender as sociedades latino-americanas. Será que poderíamos fazer alguma analogia com a industrialização brasileira, não apenas pelos discursos contemporâneos de capacitação e transferência de conhecimento e material industrial através de subsidiárias de empresas agindo em países emergentes? De que forma um olhar ao setor relojoeiro suíço nos permite uma reflexão sobre as práticas de consumo de produtos de luxo e ostentação social das elites mundiais, principalmente nas suas ramificações periféricas? Neste viés da argumentação, basta a gente lembrar do tão celebre debate sobre o relógio Rolex do Luciano Hulk sendo roubado em São Paulo (ver a discussão proposta no artigo “O lance do Rolex” de José Carlos Rodrigues e Juliana d’Arêde). Ou ainda, vale a pena ver os vídeos de publicidade para uma empresa suíça de personalização de relógios de luxo, gravados com alguns notórios brasileiros, como Rubens Barrichello, corredor de fórmula 1, ou Tallis Gomes, empreendedor e criador da EasyTaxi, companhia de monitoramento real de táxis. Em próximas publicações do blog, vamos ver como a empresa contratada para a dita customização de um relógio de luxo, a Artisans de Genève, foi há pouco tempo responsável por um certo deslocamento das fronteiras do que constitui o direito à marca sob o produto através da sua mais recente vitória judicial no Tribunal federal suíço contra a empresa Rolex (ver artigo que resume a historia na imprensa suíça aqui). Talvez possamos ainda discutir como a implementação das tarifas sob importes com a administração de Trump afeta esta indústria, cujo maior consumidor é o mercado estadunidense. Em algum momento, poderíamos nos interessar pelo debate sobre a porcentagem necessária para que um relógio possa carregar o título de “produzido na Suíça.” (uma palhinha sobre este debate segue aqui). Bem mais tarde, vamos falar sobre os resultados daquele estudo (Schultz e Seele 2022, p. 14) que indica, baseando-se em conversas com trabalhadores da indústria de relógios, que alguns de seus clientes que trabalham para seguradoras suíças retiram seus Rolexes antes de conversarem com futuros clientes, com receio de que estes últimos possam vir a associar suas respectivas empresas com a venda predatória de seguros. E, certamente, ainda este ano, nos debruçaremos sobre a seguinte questão: O que pensar da posição de antropólogas/os/es que estudam a temática da indústria de luxo – estariam estes e estas em uma cilada metodológica, na qual seus sujeitos de estudo também exercem um determinado poder sob si? O estudo de Mehita Iqani (2022), antropóloga da indústria de luxo na África do Sul, que escreve um artigo sobre, mas também posta uma foto sua com um colar de ouro da marca Cartier no seu Instagram pessoal, é aqui revelador e potencialmente muito útil pra elaborarmos por fim uma critica à sociologia e antropologia que não escapa de uma fetichização desse mercado. Dentre os muitos debates que esta coluna ainda pode apresentar, é bom estarmos de acordo com o seguinte: trataremos aqui de temas que regem a indústria relojoeira suíça, subentendendo-a como um recente agregado da indústria de luxo e um braço industrial da indústria do turismo na Suíça. Proponho estes debates sempre numa perspectiva brasileira e feminista interseccional (por eu ser uma especialista em estudos de gênero que se interessa acima de tudo pela síntese entre feminismos, economia política e geopolítica. Já escrevi, por sinal, sobre a economia política do feminismo brasileiro aqui). Tem ideias, sugestões de temas ligados a indústria de luxo e/ou a relojoeira suíça ou críticas a este primeiro post? Mande um e-mail pra annelise.erismann@gmail.com. [1] Bohlhalter, B. (2016). Unruh: die schweizerische Uhrenindustrie und ihre Krisen im 20. Jahrhundert. Zurich:Verlag Neue Zürcher Zeitung e Grolimund, R. (2009). Amerikanische Herausforderung für die ‚Zukunftsstadt‘. Modernisierungsprozesse